Insight Sonata

junho 12, 2012 § Deixe um comentário

 “[A medida do possível] é a soma de todas as possibilidades subtraindo as impossibilidades. A unidade de medida é o acaso.”

– Carlos Desenha.

Me é absurdamente estranho e ambíguo lidar com ela. A cada momento, eu me encaro de outro jeito para com ela, triste ou engraçado.

A sua realidade hoje está muito diferente, está muito outra. Ela diz das coisas da casa, das telhas, do menino preso na gaiola, de tudo, tudo que não existe. E ela diz com certeza e, para ela, os loucos somos nós. Ela acredita em sua realidade.

Eu me vejo deitado ao seu lado, às vezes pensando com pena, por ela falar do inexistente, do existente apenas em sua mente flagelada, mas ao mesmo tempo, é estranha a sua nudez. É ela, o tempo todo, mesmo vivendo e experimentando um mundo irreal. Não apresenta nenhum traço de modificação na personalidade, ela apenas está em outro lugar, então eu tento ir pra lá também e converso com ela sobre a telha e solto o menino da gaiola, mas me é difícil. Isso dói.

Talvez a falta de visão tenha colaborado muito para isso, junto com todo o inesquecível resto. Ela não sai da cama, e diz sobre estar em outro lugar, sobre não estar em casa, sobre ir pra casa.

Eu entro no jogo, informo coisas quando é necessário, consigo fazê-la tomar os remédios, converso com ela, e, na medida do possível, vivemos, mas isso realmente dói.

A morte não sente luto

maio 30, 2012 § Deixe um comentário

Lendo sobre a bruxaria dos Azande, me veio em mente a morte e os dias em que me vi com ela.

Li, certa vez, um livro de Castañeda, em que o nagual Dom Juan mostrava para ele aonde é que sua morte se posicionava, sempre. Era à esquerda, com a distância de um braço esticado.

E então, muito tempo depois, ela já estava sem enxergar, e estava deitada em sua cama. Acordou delirante e eu me fiz ser notado. Ela me disse, “vejo minha morte”, e eu logo me lembrei do livro, mas não quis levar tão a sério, embora tenha perguntado, com certo ceticismo, “aonde ela está?”, ao que ela respondeu, “na esquerda”, naturalmente.

Não que eu tenha realmente acreditado completamente nisso, mas nunca levo as coisas com a certeza do não, nem do sim. Procuro levar as coisas como o vago que se encontra em mim, simplesmente, e deixo que se manifestem por meu “mentar”.

Naquela viagem, a qual fui e voltei com a mesma imagem noturna do mesmo rio, que, repito, já não era o mesmo, e nem eu, na volta também me deparei, dado que estava na esquerda, algo parecido.

Via, com o ônibus escuro, um homem de pé, agitando os braços, de branco, que aparecia a todo momento em que meus olhos não o fitavam diretamente. Então eu fiquei caçando sua visão, de canto.

O ceticismo meu e de todos diria que era só uma impressão, e era. O que não é só uma impressão? Qual é a diferença de ser ou não?

Talvez a morte se vista de branco, talvez não tenhamos olhos suficientes. Mas nunca me disse certo do que vi ou pensei, nem mesmo me sinto certo, nem do sim, nem do não.

Trilogia dos Sonhos

maio 27, 2012 § Deixe um comentário

I.

Fui recebido por você na chegada,

de não sei, em não sei.

Descemos quietos a escada

divididos pelo corrimão.

Corremos nossas mãos involuntárias

que encontraram-se em frio.

Terminadas as escadas,

terminados os corrimãos,

nossas mãos não se cessaram.

Você recolheu a minha

e a deu abrigo nas suas.

II.

Me achei decidido em ir te ver no hospital, internada há duas semanas. Nunca deixou de me ser oculto minhas reações em lugares alienadores. À porta, encontrei a família de uma amiga, sem a amiga. Mãe e irmão, que também são amigos. Fumamos a maconha filtrada que agora vendiam em postos e falamos sobre as relações maternas, de todos.

Me lembrei de que você estava no quarto e fui vê-la. Ainda estava cega. Entrei no quarto e estava deitada, tudo parecia branco amarelado. Falamos sobre qualquer coisa e você me pediu uma caneta. A mesma caneta que sempre carrego, e você nunca soube. Pegou a caneta e começou a escrever em um papel. Eu te auxiliava quando suas palavras saíam da folha, e te guiava de volta, enquanto meu peito chorava pela visão de manifesto, de ação, que via.

Li o que escreveu. Era uma frase engraçada e nonsense, algo do tipo “Se ninguém mexe comigo, eu me remelexo. Se alguém mexe, eu levanto as calças”. Nós rimos por um tempo e eu acordei.

III.

Fui dois, ao mesmo tempo.

Um, o empresário. Bem-sucedido, rico e pervertido. Abusava de mulheres, com certo poder, o que as admirava e as deixava abertas a isso.

Outro, o bobo. Pobre, quase infeliz e simples. Estava apaixonado por uma garota, uma garota de cabelos amarelos. Fazia o que podia para conquistá-la. Armava jogos, brincadeiras, e estava quase conseguindo, realmente.

O que uniu as duas personalidades em um único momento foi um episódio aleatório.

O bobo estava andando pela praia e avistou pessoas jogando volei. Algo aconteceu para que a atenção de todos se dissipasse e a bola caiu. Achou ele que seria um ótimo presente para a garota, e roubou a bola. Correu, e o dono da bola atrás, gritando.

O empresário andava pelo condomínio de seu edifício, despreocupado. O bobo entrou no condomínio com a bola, e se abaixou, para que, de fora das grades, o dono não o visse. Controlando os dois, fiz o empresário subir em um banco e andar pelo jardim, para chamar a atenção do dono da bola e fazer com que ele perdesse de vista o bobo. Funcionou. O bobo fugiu, e o dono da bola reconheceu o empresário como seu chefe e iniciou uma conversa com ele.

Controlava os dois personagens, sem que nenhum dos dois soubessem de mim e menos do outro. Não sabiam que eram o mesmo, que eram eu, nem nada, mas eu sabia de todas as nuances.

Acordei.

Os Palhaços

fevereiro 27, 2012 § Deixe um comentário

Há horas em que é vísceras. Descobre sua máscara e mostra-se um palhaço, como sempre. Não beija nenhum lábio, não sei deita com nenhum corpo. Não acende um cigarro, não toma um café.
O nariz vermelho e redondo evidenciado de qualquer modo que não seja quieto. A fala mostra o sorriso pintado.
– Estou feliz ou estou triste?
Se perguntava diante do espelho, sem saber em que boca confiar. Caso fosse realmente um palhaço, seria sempre feliz. Estava condicionado a isso, condenado.

Não acendi o cigarro e nem tomei um café enquanto andava pelo quarto que não estava em semi-luz. Nem mesmo andava. Apenas me sentei e ouvi outro palhaço, um que talvez fumava, um que beijava e se deitava, um que talvez fosse triste ou talvez estivesse tão condicionado quanto eu.
Nunca mostrei meu rosto, sempre fui sem maquiagem.
Sempre viram meu nariz vermelho e redondo travestido de perfeito.

Não se bebe pela morte de um palhaço e não se quebra esse traje.

Eu não quero crianças, quero risadas.

The Blue Shadow

fevereiro 4, 2012 § Deixe um comentário

I am the morning.
I am the God of the Clouds and the day borns into me.
I am the first sun.
The dark shadow of the day.
The sky colored shadow of the day.
The Blue Shadow.

Quente e Inverno

novembro 30, 2011 § Deixe um comentário

Peguei a faca e cortei um pedaço de ricota. Comi o pedaço e percebi logo que não estava bom pra queijo naquele dia. A ricota desceu mal.
A casa, em geral, não estava boa pra queijo. Todo mundo esperava uma boa notícia, uma pra cada. Ninguém tinha uma boa notícia fazia uns três anos, na média. Pra mim, fazia um ano, e eu era o segundo melhor colocado em questão de boas notícias.
Me ligavam três vezes por dia procurando por outra pessoa.
Fazia quatro dias que eu não saía de casa. Há quatro dias, me haviam seguido por um bairro inteiro, até que chegasse em casa. Então eu entrei, abri a porta da frente e vi que a cozinha estava praticamente congelada.
Havia gelo por toda a parte, formando camadas grossas e alguns montes. O bom é que estava calor.
Peguei uma pá no quintal e comecei a tirar tudo, quebrar o gelo e restaurar a normalidade do lugar. Surgiram alguns cortes nos meus braços e percebi que ali também havia vidro.
Foram duas horas limpando e depois mais meia hora secando tudo.
Depois eu me deitei pra descansar.
Acordei aqui, outro lugar. Comi ricota. Falta um telefonema pra terminar o dia.

O telefone toca, eu atendo. Não é uma boa notícia, pra variar. É alguém procurando outra pessoa.
Isso pode parecer inveja, mas eu não queria que ninguém me procurasse. Queria também que ninguém me ligasse procurando alguém. Eu não sei onde ninguém está.
Meu problema, meu problema. Já não tenho mais perfume e a água está quente.
O bloco de notas continua muito vazio, muito incerto.
O violão continua sem uma nota, sem sol.
Aqui tudo é tão quieto que a maior felicidade parece um “obrigado”.
Quando eu consegui finalmente limpar toda a cozinha, há quatro dias, eu a sujei novamente com sangue.
Quando o homem me seguiu, há quatro dias, eu gostei de sentir medo e o esperei à porta.

A Pulseira

outubro 7, 2011 § 1 comentário

Estava cansado e ocupado com os sucos para aquela que se perdia. Eu não podia, de forma alguma, me esquecer de encontrá-la, mas quase que fiz. Saí a sua procura não muito tempo depois e, no deserto onde se encontrava minha casa, eu também me perdi.

Havia, lembro-me bem, adormecido com a pulseira azul xadrez que tirei da blusa que você me deu há muito tempo atrás. Eu nunca vesti, me desculpa, não deu tempo.  Mas pelo menos hoje eu dei utilidades novas a tudo aquilo.

Te encontrei, perdido, procurando a desaparecida. Você me soou indefeso e doente. Me forçou uma felicidade e até trocamos nossos números com a mútua promessa de nos lembrarmos daquele fim de semana específico onde substituí sua dor de um jeito ineficaz. Você não me culpou e me agradeceu, eu me lembro.

Te encontrei com o terno estranho, de duas cores como aquele velho artista fracassado. Estava magro e com olhos fundos. Não perguntei nada sobre isso e nem sobre o motivo de estar sozinho. Falou mal da cantora que animava as conversas do bar, ela não te animava.

Fomos interrompidos pelo despertar. Olhei para a cama e a pulseira jazia estourada do lado do travesseiro. Me senti culpado pela distância, mas entendi, na verdade, que a distância não é feita por passos, é feita pela presença de vida.

Estar no Transporte

setembro 28, 2011 § 1 comentário

Quase um erro não meu, desci do ônibus. Com os pés em pleno planeta Terra novamente, depois de 40 minutos fora dele, um aroma de vinho invadia o ar. A culpa não era minha. Passavam pelo bairro os aromatizadores, às quase onze da noite, e eu tive que labirintar. Não se pode cruzar diretamente com o órgão principal, é preciso refazer seu caminho para que sua saúde não se afete. Quer dizer, não se afete ainda mais.

O céu estava invisível. Deturpado pelas luzes e fumaças de um normal fim de noite, e a culpa não era minha. Olhei para trás, e só vi a outra que desceu também do ônibus. Caminhos opostos. O cheiro era bom. Conseguia me lembrar de como foi visitar os vinhedos durante os tempos semi-luna. Conseguia me lembrar muito bem. Foi muito trabalho numa semana, mas tinha sido minha escolha. E não me arrependia, gostei daquela semana e guardei-a no cheiro. Depois, a vida mudou, mas eu permaneci sem culpa.

O asfalto estava lindo. Parecia até ser fruto do céu. Caminhei um pouco mais que o desejado até que cheguei em casa.

Acompanhavam-me pelos ouvidos sonoras manifestações contemplativas.

Entrei. E, como sempre, jaziam na cama do quarto. Quis chorar, mas não pude. Não se pode chorar como antigamente, não é mais necessário.

Corei com a janta que me esperava e me senti envergonhado pelos talheres que usava. Estava péssimo. Tentei reagir, mas, diferentemente das outras vezes, não fui salvo pelos números ou pelas taxas, e fiquei só, olhando para o relógio que parecia querer dizer algo. Mas, pela primeira vez, ele não disse.

Agora já são 2:38, continuo esperando sua voz soar como um sino pela Rua 32.

Besouro Mendes e Família

setembro 16, 2011 § Deixe um comentário

Um homem trabalhava em sua mesa longa. A velha estava descascando, então precisava fazer uma nova. Passava algumas partes do dia, não o dia todo, tratando da mesa. Não queria nada perfeito, não tinha tanto esmero. Gostava apenas de um serviço bem feito.

O besouro andava pela mesa velha, observando o trabalho do homem. Gostava do modo como ele fazia as coisas: media, lixava, envernizava, procurava ajustar os pés; mas, na verdade mesmo, o besouro preferia a velha.

O homem, depois de 2 horas e 32 minutos de trabalho, acabou observando que o besouro o observava. Se aproximou da mesa velha com curiosidade, tendo um peteleco armado na mão direita. Chegou bem perto, alinhou sua vista com a superfície da mesa e fitou o besouro frente a frente. Pela beleza do besouro, acabou passando alguns minutos assim.

Num agudo quase inaudível por qualquer um, o besouro, finalmente, disse:

– O que foi?

O homem pulou. Pulou e caiu pra trás, batendo, com as costas, a porta da entrada da sala.

Caiu e ficou parado um tempo, ofegante. Tentou refazer o som do besouro na cabeça, para que, aí sim, ele fosse apenas uma onomatopeia, e sua vida continuasse intocada por besouros falantes. Mas não, era real.

Foi se levantando devagar, olhou para o besouro, meio assustado, meio querendo matá-lo, de pé e de longe.

– Eita, doido, se acalma! – disse o besouro, mantendo o tom.

O homem resolveu pegar toda a sua sanidade, embalá-la em um saco de pão, amarrar com arame e mandar entregar na prefeitura. Se acalmou e puxou uma cadeira do lado esquerdo. Ficou olhando o bicho, até que resolveu falar.

– Tá bom. Por que você disse?

– Perdão?!

– Por que você falou? Nunca falou antes…

– Ah, sim. Falei porque prefiro a velha.

– Quem?

– A velha. A mesa velha. Não gosto da nova que você tá fazendo?

– Ué! Por quê?!

– Ela é antiestética.

– Discorra.

– O mogno não combina com essas pernas que você tá colocando. Devia pesquisar mais sobre essas coisas.

– Mas as pernas támbém são de mogno!

– Não são não, amigo, te enganaram. É só uma imitação.

– Hum… mas e sobre a estrutura?

– Pior ainda. Os ângulos estão todos errados…

– Noventa graus! Tá certo!

– Noventa graus aonde? Aquela primeira do seu lado tá 94, a segunda 88, e as duas de trás juntas mal dão 170.

– Mentira.

– Verdade.

Atrás do homem, encostando na porta, surgiu um de seus gatos, com postura atenta e estratégica.

– Olha lá, aquele seu bicho, manda embora! – o besouro gritou.

– O quê?

– O gato! O gato! Ele tá me dando medo, manda isso embora!

– Ah, você tem medo? Então peraí.

O homem, pirracento, pegou o gato no colo, colocou-o em cima da mesa e ficou o segurando. O gato olhava famintamente para o besouro.

– Que sacanagem! Eu te dou dicas sobre a mesa e você me vem botar medo! Sai!

O homem pôs o gato no chão e, após espantar ele, fechou a porta.

– Pronto. – disse, divertido.

– Obrigado. Agora, se você me dá licença, eu vou me virar de ponta cabeça e morrer decentemente, como meu pai, meu avô e toda minha linhagem.

– O quê?! Eu te salvei do gato…

– Agora você me salvou, mas depois eu já não vou saber. Melhor ir agora.

– Mas você… não fica triste ou com medo?

-Com medo?!

– É! Da morte…

– Mas pra quê? Como é que eu vou ter medo de algo que nem sei o que é?

Aí então, o besouro se virou de costas e o homem acabou acordando da siesta.

Bocejou. Se espreguiçou. Pensou sobre o sonho e não chegou a nenhuma conclusão, apenas sobre a moral da história. Era um bom conceito sobre a morte e iria tentar se acostumar com ele.

Foi pra cozinha, tomou um café e fez carinho no gato. Olhou pra ele e ele tinha um besouro na boca. O homem riu.

Lembrou-se de terminar sua mesa nova de vez. Só faltava uma mão de verniz.

Estalou as costas, pegou o pincel e a lata de verniz,  se pôs de frente para a mesa nova. Olhou para a mesa velha: nenhum besouro o observava. Deu um pulo sem sair do lugar. “Estou acordado ou estou dormindo? Estou acordado.”

Pôs o pincel na lata, tirou e, na primeira pincelada, envernizou um besouro na mesa. Riu mais ainda, e achou tudo aquilo alguma sacanagem divina. Olhou pra cima, simbolicamente olhando pra Deus, e, no teto, também havia um besouro. No começo da gargalhada, o besouro caiu em sua boca, e ele, sem pensar, cuspiu. O besouro voou até a mesa velha, onde ficou, de ponta cabeça, com as patinhas mexendo daquele jeito, que não se sabe ao certo se ele pede clemência ou se está se divertindo muito.

O homem decidiu adiar a última mão de verniz e começou um ato nobre.

Com cada um dos três besouros, ele fez uma coisa.

Com o que estava na boca do gato: ele tirou daquele incômodo lugar e fez um colar.

Com o que caiu na mesa nova: ele deixou lá mesmo, o verniz secou e o besouro se tornou parte da decoração (após ele ter se certificado de que as pernas da mesa realmente tinha 90º).

Com o que caiu na mesa velha: ele levantou uma das ribas da mesa, e jogou o besouro, de ponta cabeça, dentro da parte oca.

Depois de três dias, o homem foi ler Kafka, e entendeu tudo direitinho.

Acabou achando todo o acontecimento muito divertido e simbólico, e dele tirou muitas reflexões e filosofias que usaria para a vida toda. Mas, por um acaso, não chegou a se tocar de que a casa podia estar infestada daqueles insetos, e, infelizmente, o gato morreu duas semanas depois, de hemorragia interna.

Na Casa nº525

setembro 12, 2011 § Deixe um comentário

Ele gostava de usar chapéu. Mas não só gostava, como tinha uma utilidade para aquele uso. Usava chapéu porque seus cabelos caíam. Então, toda noite, depois de longas manhãs e tardes de trabalho e caminhada, ele se deitava na cama com a barriga pra cima, escorregava o corpo até ficar sem encosto na cabeça e, depois que ela ficasse de ponta cabeça, ele tirava o chapéu com todos os cabelos caídos dentro.

Depois era só tirar e lavar o chapéu e a cabeça. Tinha três chapéus: enquanto um secava, outro estava quase secando e um estava em sua cabeça.

Pra lavar a cabeça, aproveitava o banho quente. Seu banho demorava cerca de trinta minutos. Ele gostava de ficar um bom tempo de pé, só, sem fazer nada, debaixo da água. Terminado o banho, saía molhado do box e ficava na frente do espelho se olhando até sentir frio. Estava ficando careca.

Pegava a toalha e se enxugava. Então se vestia e abria a porta que, apesar de morar sozinho, sempre estava trancada.

Um dia ele me disse “Amigo, estou cansado. Acho que minha cabeça responde à minha vida e minhas mechas se perdem como eu perco os dias. Não se assuste se eu morrer de repente. Não vou me matar, mas a culpa é minha. Sempre tive essa impressão da morte…”

Eu não me lembro o que respondi naquele dia, mas era algo como “Você soa patético quando tenta ser sério junto com a humanidade”, o que ele respondeu com “Você não entende”. Lembro que não me aguentei de tanta raiva e dei um soco no peito dele e ele caiu, fraco. Eu o levantei, e dei outro soco, e o levantei de novo. Ele começou a chorar e perguntou o que eu estava fazendo, o que eu queria dele.

Eu não iria dizer nada e dar outro soco, mas achei melhor falar, e respondi que queria que ele morresse sem ter culpa. Ele começou a chorar. Eu comecei a rir.

– Do que você tá chorando?!

Ele ficou quieto e envergonhado, e falou com uma voz que quase não saiu: “não sei”. Eu ria ainda mais e ele ficou com o rosto avermelhado.

Ele me perguntou se eu estava testando ele, se aquilo era um jogo, ou se tinha alguma moral por trás daquilo.

Eu disse: “Não”, mas ele fez que não entendeu, então eu completei “Eu sou apenas um idiota batendo em um saco de batatas”. Ele riu até ficar sem ar e, quando se recuperou, disse que preferia jiló.